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sábado, 25 de setembro de 2010

Alma minha


Alma minha gentil, que te partiste
tão cedo desta vida, descontente,
repousa lá no Céu eternamente
e viva eu cá na terra sempre triste.
Se lá no assento etéreo, onde subiste,
memória desta vida se consente,
não te esqueças daquele amor ardente
que já nos olhos meus tão puro viste.
E se vires que pode merecer-te
alguma cousa a dor que me ficou
da mágoa, sem remédio, de perder-te,
Roga a Deus, que teus anos encurtou,
que tão cedo de cá me leve a ver-te
quão cedo de meus olhos te levou.
(Luís de Camões)

sábado, 18 de setembro de 2010

Teoria de tudo


Ao norte está o caminho estreito.
Ao sul o caminho largo.
Ao leste tem-se o portão de acesso à justiça
Com o guardião.
Ao oeste a estrada aberta da esterilidade.
Entrando na esterilidade
Encontra-se logo na primeira coisa
A teoria do tudo.
A esterilidade comporta o tudo.
Lá, e somente lá,
Qualquer marginal tem infinitas teorias
Para explicar ações
E defender a razão.


Inácio Frota

A cada canto

Soneto

Descreve o que era naquele tempo a cidade da Bahia
A cada canto um grande conselheiro,
Que nos quer governar cabana e vinha;
Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro.
  
Em cada porta um bem freqüente olheiro,
Que a vida do vizinho e da vizinha
Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha,
Para o levar à praça e ao terreiro.
 
Muitos mulatos desavergonhados,
Trazidos sob os pés os homens nobres,
Posta nas palmas toda a picardia,
  
Estupendas usuras nos mercados,
Todos os que não furtam muito pobres:
E eis aqui a cidade da Bahia.
  
Gregório de Matos Guerra

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Versos íntimos


Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

Augusto dos Anjos.

Psicologia de um vencido


Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão
e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância…
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme – este operário das ruínas -
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e á vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

Augusto dos Anjos