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domingo, 26 de fevereiro de 2012

O achaque

Desenho de Taciane, minha filha com seis anos.



       Eram três horas da madrugada quando acordei com dor no baixo ventre direito. Pensei que fosse apenas um mal-estar em virtude da bexiga cheia, mas não. Depois a dor foi aumentando paulatina e agudamente até o limite de não mais suportar. Então chamei minha esposa e disse que estava passando mal. Ela percebeu a gravidade, uma vez que só acordo alguém se for um caso de urgência, pois o sono para mim é sagrado. Ela então chamou minha irmã que morava próximo. As duas ligaram para meus dois irmãos, pois eles têm carro, mas nenhum atendeu, estavam dormindo profundamente. Tentou, então, ligar para meu cunhado, que também tem carro, e, finalmente alguém atendeu. Enquanto ele vinha, eu me aprontei rápido. Minha consorte também se preparava para ir comigo ao hospital. Até neste momento ela não esqueceu a vaidade (é o que vislumbrei na intermitência da dor) porque parecia mais preocupada com sua aparência do que comigo.
      Após quinze minutos, ele chegou. Fomos eu, cônjuge, irmã e cunhado para o pronto-socorro. O hospital estava lotado. Havia paciente até nos corredores nas macas e também no chão. Eram idosos, deficientes físicos, operados e aguardando cirurgia. Fui levado ao clínico geral, um jovem de cavanhaque, típico de médico, estava lendo um livro esotérico. Ele me encaminhou para sala de exames; lá fiz exame de urina e fiquei aguardando resultado no corredor. Ao ver aquelas pessoas sofrendo, eu achei, apesar de está sentindo uma dor terrível, que eles estavam bem pior do que eu, uma vez que, pelo menos, eu estava andando. Já que parado eu não suportava a dor, fiquei passeando pelo corredor, aguardando o resultado do exame. A mulher entrou comigo, a irmã, não, em virtude de se permitir apenas um acompanhante.
     Olhando aquelas criaturas sofrendo, eu constatei que deveras um hospital é mais triste do que um cemitério. Naquele, (hospital) as pessoas sofrem, além das dores somáticas, humilhação, preconceito, desdém, rejeição, sobretudo se for público. Um cão é mais bem tratado do que um ser humano, visto que ele é considerado um cliente por parte do veterinário e seu dono pode exigir bom tratamento, pois está pagando. Enquanto neste (cemitério), não há sofrimento. As pessoas, mesmo mortas, são queridas pelos seus parentes e respeitadas pelas desconhecidas. Neste ínterim, um rapaz trouxe o resultado do exame e me mostrou como chegar à sala de cirurgia. Fui com minha esposa. Ao chegar lá, ela falou com um médico para me atender porque eu estava muito mal, mas ele disse que não podia porque seu plantão estava terminando. Empós vinte minutos, entraram pessoas entre as quais uma parecia ser médico. Ela pediu a ele para me examinar e ele a atendeu pedindo para que eu deitasse numa cama meio alta. Fiquei lá esperando e gemendo de dor. Entraram umas moças, que me pareceram enfermeiras: cada qual mais formosa e desfilavam como se estivessem me humilhando, tripudiando de minha situação. Todos estavam se aprontando para começar o expediente e isso gerava algaravia. Houve um momento em que duas começaram a discutir; eu achei, por um momento, (se eram capaz de não respeitar meu estado, minha dor) que iriam chegar à sevícia, às vias de fato, mas uma voz masculina tonitruante acabou com o chinfrim. O médico chamou uma auxiliar pedindo-lhe o prontuário meu e leu que me indicava um problema de apendicite, porém me examinou massageando meu ventre e me perguntado se doía no receptáculo musculocutâneo e eu falei que sim. Então ele foi categórico ao afirmar que não era apendicite e sim um cálculo-renal. Foi, de certa forma, um lenitivo para mim porque, ao menos, não iria ser operado. Sempre escuto falar que qualquer que seja uma cirurgia é um risco e ainda mais nessas circunstâncias. Lembrei-me do que disse um colega da faculdade que só acredita que alguém é realmente ateu se estiver sentido uma dor de um cálculo-renal e não se valer por Deus. Todavia, a dor continuava me consumindo e ninguém fazia nada para aplacá-la. O médico, então, mandou que preparassem um medicamento análgico para mim. Não me recordo quais foram, mas sei que foram uns três. Ele me ajudou a descer da cama alta e me puseram numa maca (não havia leito vazio) com ganchos que sustentavam três recipientes contendo os medicamentos que gotejavam  para minhas veias através de uma agulha imersa na derme do braço esquerdo.   
    Subitamente, apareceu homem robusto, indígena, com indumentária e insígnia do hospital e crachá com seu nome e profissão denominada de “maqueiro”. Eu nem sabia que existia tal profissão (é vivendo -ou morrendo- e aprendendo). Ele falou que iria me levar para outra área mais espaçosa. E me deixou numa sala parecida com sala de espera, que estava cheia de gente, provavelmente de visitante. Fiquei lá recebendo a medicação. A dor foi diminuindo progressivamente até desaparecer completamente às seis horas, mesma hora que o despertador do meu celular, na bolsa de minha esposa disparou, alertando sobre a hora de trabalhar (se tivesse saudável, é claro). “Insensível”! Resmunguei. Ás sete, o coquetel medicamentoso acabou. Fui ao novo clínico-geral para receber alta. Ele falou para eu ir a outro hospital para fazer um exame mais detalhado. Ao chegar lá, fui informado de que ali só se atende funcionário público e a despeito disso, estavam com as atividades suspensas por um dia como advertência para uma greve geral futura. Então, indicaram-me o setor que administra a marcação de exame. Lá me informaram que tinha vaga somente para dali a três meses ou eu poderia ficar na expectativa da desistência de alguém. O Sol já começara a descer rumo ao Oeste. Ainda estava letárgico por causa do analgésico. A única alternativa era um médico particular. Depois de especular por uns quatro, decidi por um que cobrava um preço médio e tinha certo renome. Ponderei e depreendi que se tenho pecúlio, mas não usufruo, então não o tenho porque não me serve. Neste país é assim: paga-se previdência, educação e saúde públicas, mas ainda temos que pagar particularmente médico, escola e previdência, ou seja, pagamos duas vezes para ter o mesmo serviço.
            O médico me examinou e passou um exame chamado de urografia-escretora. Nem procurei mais a instituição pública. Fui a uma clínica particular, fiz o exame e o levei ao médico cinco dias depois. Ele analisou, sob uma luz, as radiografias e concluiu que era somente um cálculo fora dos rins; era apenas um achaque. Nada grave, nada além. Todavia eu o contestei dizendo que algo tão simples não poderia doer tanto. Ele retrucou falando que a grande dor foi devido à saída do cálculo e que bastava eu beber muita água para ficar bem e que meus rins estavam melhores do que os dele. “Os seus rins doem, doutor”? Indaguei-o.  “Não”! Respondeu. Eu disse: “então os meus não estão melhores do que os seus, não, doutor”!

 Bento Sales

Este conto eu publiquei, em abril de 2011, no blog de minha grande amiga Laura Brandão,  Humor Negro sem Censura. Estou reeditando prestando  homenagem a ela. 

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Análise do poema "Eu vi uma rosa" de Manuel Bandeira

Desenho de Taciane, minha filha com seis anos.





Eu vi um rosa
- Uma rosa branca -
Sozinha no galho.
No galho? Sozinha
No jardim, na rua.

Sozinha no mundo.

Em torno, no entanto,
Ao sol de meio-dia,
Toda a natureza
Em formas e cores
E sons esplendia.

Tudo isso era excesso.

A graça essencial,
Mistério inefável
- Sobrenatural -
Da vida e do mundo,
Estava ali na rosa
Sozinha no galho.

Sozinha no tempo.

Tão pura e modesta,
Tão perto do chão,
Tão longe na glória,
Da mística altura,
Dir-se-ia que ouvisse
Do arcanjo invisível
As palavras santas
De outra Anunciação.

           
          Manuel Bandeira foi o introdutor do verso livre e também adaptou os ritmos e formas regulares ao Modernismo. Em toda sua obra, mostra uma ardente ternura e um grande amor pela vida. É desprovida de preciosismo e vocábulo hermético. Ele criticava arduamente a poesia tradicional, como demonstra em sua obra “A Poética”:

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
...........................................


Bandeira intitulava-se “o maior dos menores poetas” (clara modéstia),  todavia, sabe-se que, na verdade, é o maior dos maiores poetas; ele expressa isso em “O Testamento”:

......................................................
Fiz-me arquiteto, não pude!
Sou poeta menor, perdoai!

           
          Através de seus “Alumbramentos”, realiza-se plenamente em sua obra. “Eu vi uma rosa” é um exemplo disso. Um poema pentassílabo em verso branco, constituído por duas quintilhas (estrofes com cinco versos), três monósticos (estrofe com um verso), uma sextilha (estrofe com seis versos) e uma oitava (estrofe com oito versos).

No primeiro verso, já se enceta com uma anáfora do título com o primeiro verso:
Eu vi uma rosa (Título)
Eu vi uma rosa (1º verso).

E a rosa começa a ascender paulatinamente, como uma hierarquia de dimensão: galho, jardim, rua, mundo, no primeiro monóstico:

 "Eu vi um rosa
- Uma rosa branca -
Sozinha no galho.
No galho? Sozinha
No jardim, na rua".

Sozinha no mundo

            Na segunda estrofe, há uma antítese com a primeira. A rosa não está mais sozinha, pois ao seu redor, estão a natureza, o Sol, os sons. Do segundo ao quinto versos, da segunda quintilha, há um hipérbato:

“Em torno, no entanto,
Ao sol do meio,
Toda a natureza
Em formas e cores
E sons esplendia".
           
            A seguir, há um monóstico que admite hipérbole a tudo que lhe foi atribuído anteriormente (à rosa):

“Tudo isso era excesso”.

            No primeiro bloco, que compreende da primeira à segunda estrofe e o verso avulso, a rosa atinge o ápice do plano material e no segundo bloco (terceira estrofe adiante), ela parte para o plano místico, simetricamente com aliteração (“essencial”, “inefável” e “sobrenatural”):

“A graça essencial,
Mistério inefável
- Sobrenatural-
Da vida e do mundo,
Estava ali na rosa
Sozinha no galho.

Sozinha do tempo

            Ainda nesta estrofe (terceira), há uma reflexão de como uma simples rosa conter tanta grandeza, tanto mistério, se ele está sozinha no galho, no mundo, na vida e como pode guardar tanto segredo, o milagre da vida e ser tão pura.
            Bandeira fez sua obra como um diário íntimo que vai sugerindo no dia-a-dia, como constata-se no “Itinerário de Pasárgada”. “Eu vi uma rosa” é um ideário do “eu lírico”. Na última estrofe, há anáfora nos três primeiros versos (Tão pura e modesta, tão perto do chão, tão longe da glória) e há também aliteração nos dois primeiros versos (“pura”, “perto”). Há uma espécie de abstração sem sair do plano físico, porém a rosa branca (branco da paz, clara referência à época que o poema foi feito, em 1945, ano que terminou a Segunda Guerra Mundial, em que o mundo estava necessitando, mais do que nunca, de muita paz) comunica-se com o plano metafísico, por intermédio do anjo supremo, que é o Arcanjo Gabriel:

“Tão pura e modesta,
Tão perto do chão,
Tão longe na glória,
Da mística altura,
Dir-se-ia que ouvisse
Do arcanjo invisível
As palavras santas
De outra Anunciação”.

            “A “rosa” como metáfora do mundo, ou seja, a visão do “eu lírico” faz a rosa transitar ora no sublime (“Tão longe da glória, Da mística altura), ora no chão humilde do cotidiano de Bandeira” Davi Arrigucci Jr.
            Esse texto é um trabalho que fiz na disciplina Teoria da Literatura I, do curso de Letras. Meu professor era nada menos que Milton Hatoum, escritor amazonense de origem libanesa, que já ganhou três prêmios Jabuti pelos romances: “Relato de um certo Oriente (1989), “Dois Irmãos” (2000) e “Cinzas do Norte” (2005). Pela gama de conhecimento do professor em literatura (e eu, apenas um calouro), fiquei feliz por ele ter me dado uma nota oito. E ele ainda nos alertou que se copiássemos a idéia de algum autor sobre o poema, ele saberia e diminuiria nossa nota, ao menos que citássemos o autor. Mas ele é, além ótimo escritor, um excelente professor de literatura e de língua francesa. Decidi publicá-lo, pois de nada serve arquivado numa pasta. Aqui pode servir de aporte para alguém e para meus amigos e leitores terem uma idéia de como se faz uma interpretação de um poema.


 Site de Milton Hatoum: http://www.miltonhatoum.com.br/





sábado, 11 de fevereiro de 2012

Haicai 7

Desenho de Taciane, minha filha de seis anos.


Haicai, haikai ou haiku é um pequeno poema de origem japonesa com aspecto formal de três versos. O primeiro verso tem cinco sílabas poéticas; o segundo sete e o terceiro cinco. A tradição nipônica faz com verso branco e métrica perfeita, mas, no Brasil, tanto é praticado com verso livre quanto rimado (eu gosto de rimado), sobretudo por Millôr Fernandes. Aqui, no Amazonas, há muito haicaístas, como Luiz Bacelar e Zemaria Pinto, que foi meu professor. A idéia central do haicai é paisagística e filosófica, porém os brasileiros abordam temas diversos, por exemplo, político, humorístico. O pioneiro em fazer haicai foi  Matsuô Bashô (1644-1694), que se dedicou a fazer dele uma prática espiritual. A seguir,vou dar exemplos de haicais de autores diversos e depois os meus. Quero agradecer minha amiga Elisa T. Campos do blog  Pintando Haikai     por ter me cedido seus haicais para esta postagens.


Dito e feito:
Tudo foi dito
E nada feito.
(Millôr Fernandes)

Aniversário é uma festa
Pra te lembrar
Do que resta
(Millôr Fernandes)

Há colcha mais dura
Do que a lousa
Da sepultura?
(Millôr Fernandes)

Densa e violenta
A barata inunda a sala
De entranhas e horror.
(Zemaria pinto)

Caminhos cumpridos
Repousam sobre meu peito
Teus pés minerais.
(Zemaria Pinto)

O lírio levanta
No meio da noite
Seu copo de leite.
(Luiz Bacellar)

O brilho do salto
Do peixe na cascata,
Lâmina de prata.
(Luiz Bacellar)

Branco orvalho
Sobre o campo de batatas
A Via Láctea.
(Matsuô Bashô)

Doente da viagem,
Meus sonhos perambulam
Pelo campo seco.
(Matsuô Bashô).

No tronco à deriva
Antes da rebentação
Tartaruga onívora.
(Elisa T. Campos)

Um verde mar
Do alto do morro se vê
Bananal ao vento.
(Elisa T. Campos)





E agora os meus:


Haicais de frutas.




Por dia, uma maçã,
Você terá uma vida
Muito mais que sã.

Uma manga ao dia,
Você terá uma vida
Muito mais sadia.

Não perde a coroa
O abacaxi p’ra viver
Assim tão à toa.

Se ajeite, menino!
Porque é de pequenino
Que torce o pepino.

No sol da manhã,
O bem-ti-vi canta no
 Pé de tucumã.

Terra fria e com chuva
É muito propícia para
Colher uma boa uva.

Gorjeia o sanhaçu
Ao se banquetear com o
Nosso cupuaçu.

Faz-me até sonhar
Sempre quando tomo o sumo
Do maracujá.

A sede me alivia
Ao comer a polpa carmim
De uma melancia.

Café da manhã:
Há banana pacovã,
Pão com tucumã.

No almoço e jantar,
Faz-nos bem consumir sumo
De taperebá.

Jamais esquecer
Que as frutas cítricas têm
Vitamina C.