Desenho de Taciane, minha filha com seis anos.
Eram três horas da madrugada quando
acordei com dor no baixo ventre direito. Pensei que fosse apenas um mal-estar
em virtude da bexiga cheia, mas não. Depois a dor foi aumentando paulatina e
agudamente até o limite de não mais suportar. Então chamei minha esposa e disse
que estava passando mal. Ela percebeu a gravidade, uma vez que só acordo alguém
se for um caso de urgência, pois o sono para mim é sagrado. Ela então chamou
minha irmã que morava próximo. As duas ligaram para meus dois irmãos, pois eles
têm carro, mas nenhum atendeu, estavam dormindo profundamente. Tentou, então,
ligar para meu cunhado, que também tem carro, e, finalmente alguém atendeu.
Enquanto ele vinha, eu me aprontei rápido. Minha consorte também se preparava
para ir comigo ao hospital. Até neste momento ela não esqueceu a vaidade (é o
que vislumbrei na intermitência da dor) porque parecia mais preocupada com sua
aparência do que comigo.
Após quinze minutos, ele chegou. Fomos
eu, cônjuge, irmã e cunhado para o pronto-socorro. O hospital estava lotado.
Havia paciente até nos corredores nas macas e também no chão. Eram idosos,
deficientes físicos, operados e aguardando cirurgia. Fui levado ao clínico
geral, um jovem de cavanhaque, típico de médico, estava lendo um livro esotérico.
Ele me encaminhou para sala de exames; lá fiz exame de urina e fiquei
aguardando resultado no corredor. Ao ver aquelas pessoas sofrendo, eu achei,
apesar de está sentindo uma dor terrível, que eles estavam bem pior do que eu,
uma vez que, pelo menos, eu estava andando. Já que parado eu não suportava a
dor, fiquei passeando pelo corredor, aguardando o resultado do exame. A mulher
entrou comigo, a irmã, não, em virtude de se permitir apenas um acompanhante.
Olhando aquelas criaturas sofrendo, eu
constatei que deveras um hospital é mais triste do que um cemitério. Naquele,
(hospital) as pessoas sofrem, além das dores somáticas, humilhação,
preconceito, desdém, rejeição, sobretudo se for público. Um cão é mais bem
tratado do que um ser humano, visto que ele é considerado um cliente por parte
do veterinário e seu dono pode exigir bom tratamento, pois está pagando.
Enquanto neste (cemitério), não há sofrimento. As pessoas, mesmo mortas, são
queridas pelos seus parentes e respeitadas pelas desconhecidas. Neste ínterim,
um rapaz trouxe o resultado do exame e me mostrou como chegar à sala de
cirurgia. Fui com minha esposa. Ao chegar lá, ela falou com um médico para me
atender porque eu estava muito mal, mas ele disse que não podia porque seu
plantão estava terminando. Empós vinte minutos, entraram pessoas entre as quais
uma parecia ser médico. Ela pediu a ele para me examinar e ele a atendeu
pedindo para que eu deitasse numa cama meio alta. Fiquei lá esperando e gemendo
de dor. Entraram umas moças, que me pareceram enfermeiras: cada qual mais
formosa e desfilavam como se estivessem me humilhando, tripudiando de minha
situação. Todos estavam se aprontando para começar o expediente e isso gerava
algaravia. Houve um momento em que duas começaram a discutir; eu achei, por um
momento, (se eram capaz de não respeitar meu estado, minha dor) que iriam
chegar à sevícia, às vias de fato, mas uma voz masculina tonitruante acabou com
o chinfrim. O médico chamou uma auxiliar pedindo-lhe o prontuário meu e leu que
me indicava um problema de apendicite, porém me examinou massageando meu ventre
e me perguntado se doía no receptáculo musculocutâneo e eu falei que sim. Então
ele foi categórico ao afirmar que não era apendicite e sim um cálculo-renal.
Foi, de certa forma, um lenitivo para mim porque, ao menos, não iria ser
operado. Sempre escuto falar que qualquer que seja uma cirurgia é um risco e
ainda mais nessas circunstâncias. Lembrei-me do que disse um colega da
faculdade que só acredita que alguém é realmente ateu se estiver sentido uma
dor de um cálculo-renal e não se valer por Deus. Todavia, a dor continuava me
consumindo e ninguém fazia nada para aplacá-la. O médico, então, mandou que
preparassem um medicamento análgico para mim. Não me recordo quais foram, mas
sei que foram uns três. Ele me ajudou a descer da cama alta e me puseram numa
maca (não havia leito vazio) com ganchos que sustentavam três recipientes
contendo os medicamentos que gotejavam para minhas veias através de uma agulha imersa
na derme do braço esquerdo.
Subitamente, apareceu homem robusto,
indígena, com indumentária e insígnia do hospital e crachá com seu nome e
profissão denominada de “maqueiro”. Eu nem sabia que existia tal profissão (é
vivendo -ou morrendo- e aprendendo). Ele falou que iria me levar para outra área
mais espaçosa. E me deixou numa sala parecida com sala de espera, que estava
cheia de gente, provavelmente de visitante. Fiquei lá recebendo a medicação. A
dor foi diminuindo progressivamente até desaparecer completamente às seis horas,
mesma hora que o despertador do meu celular, na bolsa de minha esposa disparou,
alertando sobre a hora de trabalhar (se tivesse saudável, é claro).
“Insensível”! Resmunguei. Ás sete, o coquetel medicamentoso acabou. Fui ao novo
clínico-geral para receber alta. Ele falou para eu ir a outro hospital para
fazer um exame mais detalhado. Ao chegar lá, fui informado de que ali só se
atende funcionário público e a despeito disso, estavam com as atividades
suspensas por um dia como advertência para uma greve geral futura. Então,
indicaram-me o setor que administra a marcação de exame. Lá me informaram que
tinha vaga somente para dali a três meses ou eu poderia ficar na expectativa da
desistência de alguém. O Sol já começara a descer rumo ao Oeste. Ainda estava
letárgico por causa do analgésico. A única alternativa era um médico
particular. Depois de especular por uns quatro, decidi por um que cobrava um
preço médio e tinha certo renome. Ponderei e depreendi que se tenho pecúlio,
mas não usufruo, então não o tenho porque não me serve. Neste país é assim:
paga-se previdência, educação e saúde públicas, mas ainda temos que pagar
particularmente médico, escola e previdência, ou seja, pagamos duas vezes para
ter o mesmo serviço.
O
médico me examinou e passou um exame chamado de urografia-escretora. Nem
procurei mais a instituição pública. Fui a uma clínica particular, fiz o exame
e o levei ao médico cinco dias depois. Ele analisou, sob uma luz, as
radiografias e concluiu que era somente um cálculo fora dos rins; era apenas um
achaque. Nada grave, nada além. Todavia eu o contestei dizendo que algo tão
simples não poderia doer tanto. Ele retrucou falando que a grande dor foi
devido à saída do cálculo e que bastava eu beber muita água para ficar bem e
que meus rins estavam melhores do que os dele. “Os seus rins doem, doutor”?
Indaguei-o. “Não”! Respondeu. Eu disse:
“então os meus não estão melhores do que os seus, não, doutor”!
Este conto eu publiquei, em abril de 2011, no blog de minha grande amiga Laura Brandão, Humor Negro sem Censura. Estou reeditando prestando homenagem a ela.